AUTONARRATIVAS EM REDES SOCIAIS: a relação discursiva na vivência de situação traumática

AUTONARRATIVAS ON SOCIAL NETWORKS: the discursive experience in respect of traumatic situation

AUTONARRATIVAS EN LAS REDES SOCIALES: una experiencia discursiva con respecto a la situación traumática

Sandra Farias Maia-Vasconcelos 1 (sandramaiafv@gmail.com)
Samuel Freitas Holanda 2 (samukaholanda@gmail.com)
Mayara Rodrigues Braga 3 (may.braga@alu.ufc.br)

1,2,3 Universidade Federal do Ceará

Resumo

Estudar a autonarrativa em situação traumática implica duas peculiaridades: 1) Os critérios de produção escrita dos autores diante das circunstâncias que põem em risco sua integridade física; 2) A criação de um neoautor decorrente de circunstância traumática: sugeríamos a crise como articuladora de um discurso potencialmente diferente do discurso cotidiano. Este estudo objetivou: 1) Analisar recursos discursivos utilizados na autonarrativas dos sujeitos doentes; 2) Identificar a organização narratológica recorrente nas autonarrativas em redes sociais; 3) Analisar a autoconstrução desses autores circunstanciais. O corpus foi constituído de depoimentos publicados em redes sociais por pessoas em situação de doença grave. Utilizamos a Análise Proposicional do Discurso - APD, para analisarmos proposições dos sujeitos, organizadas em matrizes analíticas de acordo com os temas abordados nos instrumentos de coleta de dados. As análises mostraram que as circunstâncias de crise constroem um sujeito autor cuja narrativa nas redes sociais se vincula potencialmente as suas vivências.

Palavras-chave: Autonarrativa, redes sociais, trauma.

Abstract

Studying the self narrative in traumatic situation implies two peculiarities: 1) the criteria for authors writing on production conditions that endanger their physical integrity; 2) the creation of a new author due to traumatic condition: it floated the crisis as articulator of a potentially different discourse of everyday speech. This study aimed to: 1) Analyze discursive resources used in self narratives of patients; 2) Identify the narratological applicant organization in self narratives on social networks; 3) Analyze the self-construction of these circumstantial authors. The corpus is made up of statements published on social networks for people in a situation of serious illness. We use the Propositional Discourse Analysis-PDA, to analyze propositions of the subject organized in analytical arrays according to the topics covered in the data collection instruments. The analysis showed that the crisis circumstances build a subject author whose narrative in social networks potentially binds their experiences.

Keywords: Self narrative, social networks, trauma.

Resumen

Estudiar la auto narrativa en situación traumática implica dos peculiaridades: 1) los criterios para la producción escrita de los autores en las circunstancias que pongan en peligro su integridad física; 2) La creación de un neo autor debido a circunstancias traumáticas: nos sugirió la crisis como un articulador de un potencial diferente del discurso de habla cotidiana . Este estudio tuvo como objetivo: 1) analizar los recursos discursivos utilizados en auto narrativas pacientes sujetos ; 2) Identificar la organización solicitante en auto narrativas narratológicas en redes sociales ; 3) Analizar el auto circunstancial estos autores. El corpus consistió en testimonios publicados en las redes sociales por personas que enfrentan una enfermedad grave. Usamos el análisis proposicional del discurso - APD para analizar propuestas de temas, organizados en matrices de análisis de acuerdo con los temas tratados en los instrumentos para la recolección de datos. Los análisis mostraron que las circunstancias de crisis construyen un autor cuya narrativa tema en las redes sociales se une potencialmente a sus experiencias.

Palabras clave: Auto narrativas, Redes sociales, Trauma.

 

Introdução

Este estudo é filiado a um projeto maior desenvolvido no Grupo de Estudo em Linguística e Discurso Autobiográfico (GELDA). Vincula-se também ao Departamento de Letras Vernáculas, ao Programa de Pós-Graduação em Linguística – PPGL – da Universidade Federal do Ceará e está cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa da Plataforma CNPq. Esse projeto é ligado à Universidade Estadual do Ceará, em colaboração com a equipe do Programa de Mestrado em Saúde Pública, à Universidade de Nantes, na França, onde fizemos doutoramento, bem como é ligado à Universidade de Laval – Canadá. O projeto maior tem como grupo de sujeitos participantes pessoas em situação de risco, seja esse risco provocado por doenças graves, maus-tratos ou acidentes. Estudamos a comunicação entre médicos e pacientes – toda a dimensão de atendimento – no que tange ao acolhimento, aos cuidados e à compreensão dos tratamentos por parte das famílias, bem como a manifestação discursiva elaborada pelos pacientes e pelos cuidadores. Elaboramos, em paralelo, um estudo sobre a construção narrativa de pais que perderam seus filhos em situação traumática e que publicaram em forma de livro essa narração dolorosa. Consideramos situações traumáticas aquelas em que o sujeito se encontra em posição de crise e que irá articular um discurso diferente do que proferiria em uma situação corriqueira ou cotidiana.

Em estudos anteriores (MAIA-VASCONCELOS, 2008; MAIA-VASCONCELOS e CARDOSO, 2010), realizamos entrevistas e analisamos obras biográficas que tratavam sobre morte de crianças, relatadas por seus pais. Também foi possível coletar o arcabouço teórico próprio distintivo entre o relato de vida, narração autobiográfica, história de vida, depoimento e confissão. Foi elaborada uma fundamentação teórica com vistas a legitimar o estudo autobiográfico com o viés da autoria, dentro dos domínios da Linguística. No presente estudo, buscamos perceber uma nova dimensão da comunicação que começa a alcançar as salas de hospitais e os leitos dos doentes: as redes sociais. Os ambientes das redes sociais vêm se transformando em uma nova maneira de esses sujeitos isolados pela doença manterem contato com o mundo exterior à doença e ao tratamento a que se submetem e que lhes provocam traumas muitas vezes irrecuperáveis.

Essa mudança que se manifesta na linguagem desses neoautores gira, segundo Van Hooland (2000: 46) em torno da verbalização, mas também da reflexão, da escrita e da releitura. Para a autora, a verbalização produz conhecimento, pois as questões concernentes às crises só têm, ou ganham sentido na relação de interlocução. Do mesmo modo que Koch defende a postura de Beaugrande e Dressler (KOCH, 2008), segundo a qual a construção do sentido pelo texto acontece no momento em que a intencionalidade do emissor encontra a aceitabilidade do receptor, também indiciamos nosso olhar na perspectiva barthesiana de efeitos de realidade (BARTHES, 2004), promovidos pelos sinais narrativos específicos de situacionalidade. O efeito de real, segundo Barthes, refere-se a um artifício discursivo que tende a produzir no texto a ilusão do real, o universo de referência no qual o efeito produzido é textual. Não nos é também distante da ideia de circunstância de enunciação de Maingueneau (1999) que discutiremos a seguir.

Na circunstância de contato de um internauta, seja ele saudável ou doente, com um mundo virtual, a situação pede uma entidade responsiva, bem evidente nas redes sociais, que não habita nem o autor nem o leitor e que muitas vezes vem distanciada da mensagem de origem. Esse sujeito, diante da decisão de narrar e assim construir sua história, submete-se ao que Alain Blanchet (1997: 12) chamará de desalienação, por uma reafirmação da identidade social reivindicada. Daí não se poder entrever a possibilidade do previsível em história de vida e escrita de si. Supomos que a condição de produção do discurso para um doente, ainda que em rede social, por meio da tela do computador, diferencia-se das condições de um sujeito comum, sem restrições físicas de utilização do veículo de comunicação. Por essa razão, cabe ao pesquisador neste momento ter a sensibilidade de compreender os novos sentidos dados às postagens, como veremos adiante. No âmbito da pesquisa presencial, Blanchet vai denominar esse pesquisador de acompanhador, aquele que manterá uma relação de ajuda na construção de informações, reformulações e interpretações do sujeito. Em nosso objeto, este acompanhamento se torna também virtualizado pelo ambiente.

Desse modo, podemos antecipar que, ao tornar possível a postagem de links eletrônicos, imagens, vídeos e textos de autorias diversas, o Facebook assegura aos usuários, não somente a criação autoral, mas uma pseudoautoria, que não se confunde com plágio, uma autoria mediata (TAVARES, 2010) por conferir notoriedade ao divulgador da mensagem postada. O ‘postador’ é autor da escolha da postagem, muito embora nem sempre seja autor do texto. Por suas escolhas, o sujeito que posta uma mensagem constrói o espelho de si, recurso que opõe o criador à imagem idêntica.

O caráter do imediato, tão evidente nas redes sociais, assinala como ‘linha do tempo’ na rede Facebook as participações dos usuários. Partindo dessas discussões, visualizando o impacto causado nas histórias de pessoas com câncer e a possibilidade dessa emergência de um sujeito doente de mostrar-se como um sujeito para além da doença (MAIA-VASCONCELOS, 2005, 2010; CIFALI, 1998), este estudo teve como objetivos: 1) Analisar recursos discursivos utilizados nas autonarrativas dos sujeitos doentes; 2) Identificar a organização narratológica recorrente nas autonarrativas em redes sociais; 3) Analisar a autoconstrução desses autores circunstanciais. O corpus foi constituído de depoimentos publicados em redes sociais por duas pessoas em situação de doença grave: os depoimentos incluíram notícias sobre as experiências pessoais e as experiências de outras pessoas que vivem e enfrentam a mesma situação. Deste modo, estivemos trabalhando neste estudo com uma trilogia que envolve o seguinte esquema:

História de Vida -> Redes Sociais <- Histórias de Morte

 

1 Aporte Teórico-Metodológico

Para a realização de um estudo a partir de autonarrativas na perspectiva da (Auto)biografia, muitos podem vir a ser os recursos metodológicos utilizados. Dentre os possíveis métodos de abordagem de sujeitos de pesquisa, podemos citar: análise de entrevistas, a análise do discurso, a etnometodologia. Nossa escolha foi a Análise Proposicional do Discurso (APD) na perspectiva apresentada por Pires (2008), à qual acrescentamos recursos de análise narrativa que julgamos conveniente. Este método se assemelha à análise do discurso no que tange ao objeto teórico que seria a coleta de um corpus no discurso e difere no que se refere ao objeto empírico que seria a proposição e esta segunda, e mais importante para o estudo em questão, é que constitui a unidade de análise, de significação da APD. Na APD a identificação das formações discursivas passa pela descoberta de palavras características formadoras de significado, que são de importância fundamental como estruturadoras do discurso a ser analisado na seguinte lógica:

discurso proferido -> núcleos de referência -> equivalentes paradigmáticos -> sentido

Para esta elaboração, o corpus foi constituído de depoimentos publicados em forma de posts no Facebook (Fbk). As páginas analisadas foram escolhidas segundo disponibilidade e aceitação dos proprietários. Não nos foi possível estender por mais de cinco páginas pesquisadas para o grande projeto, uma vez que parece haver ainda timidez das pessoas atingidas por câncer em se mostrarem ao público e a intenção de abordagem qualitativa nos permite um número pequeno de textos para uma análise aprofundada do tema. Muitos já mantêm um perfil no Fbk e já assumem a condição de doentes de Câncer (CA), mas isso não implica que desejem e aceitem ser visualizados em uma pesquisa acadêmica.

Neste artigo tratamos especificamente de dois perfis (Fbk1 e Fbk2): dois adultos, um do sexo masculino e um do sexo feminino, escolhidos segundo o critério de disponibilidade dos autores dos perfis e por vermos que são bem representativos do cotidiano de um paciente com CA em tratamento. A coleta de dados foi realizada na perspectiva de Bertaux (2010), que traça o caminho do coletivo para o individual, percurso que se torna mais eficaz quando se quer perceber, por exemplo, a organização narratológica que vemos como recorrente. Trata-se, portanto, de pesquisa exploratória de natureza proposicional, documental e de abordagem qualitativa. Para cada situação, houve uma sistemática a seguir e uma série de fatores a considerar, tais como o tipo de CA e a circunstância de produção do relato, conforme já discutimos acima.

Em sua experiência com pessoas doentes, Stedeford (1986) explica que, no trabalho com sujeitos/pacientes terminais e/ou seus familiares, uma aproximação orientada para o problema é de muita utilidade. Para o autor, precisa-se perceber que, antes de tudo, o sujeito deseja falar sobre tudo que está acontecendo naquele momento, a causa de sua preocupação ali no instante da doença. O papel do pesquisador é permitir que ele conte tudo; devemos nos transformar, nesta hora, em ouvintes desses sujeitos. Como leitores dos perfis, devemos dar atenção ao conjunto de informações ali expressas e dar relevância a todas elas, uma vez que a escrita é sempre mais seletiva que a fala.

Observemos as postagens abaixo que nos servirão como amostras para a organização das matrizes analíticas e das análises:

FBK1 - Ebaaaa cheguei nos mil likes!!! Mil pessoas querendo saber mais sobre mim e meus amigos! Sobre linfona, outros tipos de cancer e doacao de medula!!! Obrigada por acompanharem minha historia e deixarem meus dias melhores!!! Essa página eh de todos nós!!!! :D - Depois de um dia completamente monótono, sem fazer nada em casa e sem noticias de meus amigos (sei que cada um tem suas coisas pra fazer e tal, ainda mais no carnaval... entao tento nao encanar)... eu estava bem deprezinha e vejo algumas mensagens aqui na página pedindo ajuda com informações, ou minha opinião... - Vocês não sabem o quanto isso me deixa feliz! Me sinto útil, é muito bom! Sempre que precisarem estou aqui pra tirar qualquer dúvida, contar a minha história, ou dar minha opinião....!!!!! (só sembrem que não sou médica rs) Aproveitando, as mensagens de vocês tentando me animar e dando força são ótimas também!! Obrigada, gente ♥
FBK2 - Gostei da mudança do Facebook na Linha do Tempo, mas a mudança aqui da página está me deixando confuso, não gostei :-P Eu sempre procuro compartilhar postagens de outros colegas de batalha... Na postagem anterior, tem muita gente achando, mas não sou eu na foto, só achei interessante o ponto de vista do rapaz e decidi compartilhar aqui. - Acho curioso como as pessoas tem uma visão diferenciada sobre o câncer, e respeito, acho que o importante é estar bem consigo mesmo, e se estiver dando certo, continuar seguindo o próprio compasso...Em frente sempre :-) - Esgotado, mas finalmente em casa. Daqui alguns dias saberemos o quanto deu resultado, minha tarefa agora é aproveitar esse climinha frio em casa e tirar as paranóias da cabeça. Desde que descobri o câncer o medo dorme e acorda comigo todos os dias, tenho medo até de dormir, porque na minha cabeça atormentada, eu posso morrer dormindo. Ainda não abri as mensagens, mais tarde vou tentar respondê-las, ou pelo menos boa parte delas.

O que caracteriza, a priori, os trechos acima é o fato de que são depoimentos confessionais, ou escritas de si, cujos narradores em primeira pessoa se apresentam nitidamente identificados com sua proposta de escrita e de situação na rede social. Pineau (1980), citado por Lani (1990), afirma que falar de si é uma prática arriscada. O risco implica na atitude de fazer retornarem acontecimentos do passado a despeito do presente e do futuro. Lani comenta, entretanto, que a prática do discurso de história de vida não é tal como se apresenta, voltada para o passado. Ao contrário, o passado funciona, segundo a autora, como uma mola que projeta a história para elaborar o futuro. A autora ressalta ainda, em consonância com a opinião de Lebovici (1992), que no discurso de vida ou no depoimento pessoal, o fenômeno se opera como uma antecipação do passado que leva à lembrança do futuro. Essa fórmula utilizada pela autora para dar vazão à história de vida contradiz, na verdade, com a existência daquele que conta sua história.

A história de vida não pode ser vista como uma progressão ao longo de um continuun, mas um vai-e-vem sobre experiências anteriores, vivificadas dia a dia pelas novas experiências. A história de vida se conjuga com passado e futuro para se construir no presente; é, pois, basicamente, a conjunção de recortes do que se quer contar, expostas as razões pertinentes, não a sua vida completa. Além disso, levantamos a hipótese de que a experiência contada pelo sujeito que a viveu e a experiência contada pela memória de outrem, ou, ainda, pela criação a partir de uma realidade externa terão construções narratórias diferenciadas.

Pressupomos, no presente estudo, que a lembrança desse passado reencontrado de Lebovici se mescla à probabilidade submergida de viver cenas futuras. Isso porque a ‘linha do tempo’ na rede social é um espaço a mais nessa narrativa emergente: para além da história, para além da vida, conforme nos apontam Pineau e Le Grand (1996) em seu esquema autoexplicativo, a linha do tempo do Facebook é um artifício que inaugura um ‘espaço suspenso’ em que o usuário pode livremente ir e vir em seu perfil, ou no de qualquer outro usuário de seu grupo de amigos, não somente nas páginas anteriores, mas inclusive acrescentando comentários a postagens antigas, como se fosse possível modificar o passado por meio de acréscimos de informações, juntada de dados ou mesmo retirada de postagens que apagassem o que foi vivido um dia.

Contar a própria história ou fazer-se contar por intermédio de outras pessoas quando se é incapaz de fazê-lo é um viés interessante, entretanto não suficiente, de se fazer vir ao mundo. Quando se trata de uma publicização autorizada pelo ambiente virtual, espaço a cada dia mais corriqueiro no cotidiano da sociedade moderna, acreditamos que contar a própria história é um exercício de autoconsciência, de distanciamento que faz com que o narrador, numa condição de fragmentação interna, seja expectador de si mesmo: um eu que cria e ao mesmo tempo observa, dialoga e intervém no processo de criação, um grau zero de sua imersão no universo público que se desloca do privado, enquanto ostenta o público.

A fim de tentar melhor esclarecer que na estrutura de uma narrativa autobiográfica há categorias usadas para comporem estas autonarrativas, Cardoso (2009) desenvolveu um diagrama conjuntivo:

figura1

No diagrama, pode-se observar, por um lado, que a autobiografia está inserida em um campo maior, que é o dos gêneros do discurso; de outro, infere-se que o tipo de texto usado com maior frequência na estruturação do gênero autobiográfico, é o narrativo. Logo abaixo são identificadas duas categorias que estão interligadas: o discurso, que remete ao gênero autobiografia, pois é característica da autobiografia a utilização de estratégias identitárias e da emotividade para falar/escrever de si; e a memória, que está relacionada ao tipo de texto, pois há a utilização das lembranças para autorrelatar-se. Assim, a partir desse processo de composição, surgem as narrativas autobiográficas.

Muito embora a ligação entre as categorias discurso e memória possam causar certa estranheza, quando se propõe que uma está ligada ao gênero e a outra ao tipo - considerando-se que ambas possuem características semelhantes e que poderiam estar inseridas, em princípio, em ambas as designações mais gerais (gênero e tipo) -, isso se explica pela própria estrutura do diagrama. A autora poderia, por exemplo, ter optado por separar, em dois círculos distintos, as categorias, mas optou por uma figura que representasse a ideia de que as categorias podem estar juntas, como frequentemente estão, para compor a autonarrativa. Considerando o que já foi exposto até aqui, pode-se perceber, em relação ao diagrama proposto, uma articulação específica entre narrativa e autobiografia para falar de si. O que se verá na sequência, contudo, é um distanciamento, vez que a autonarrativa em redes sociais não depende da memória do sujeito-autor, mas fornece um panorama que constituirá esta memória.

Levando em conta os elementos explicativos da Análise de Discurso e uma tentativa de sistematização melhor dos dados é que escolhemos a Análise Proposicional do Discurso que, para Pires (2008: 86), ”resulta de tentativas, ensaiadas ao longo de dez anos de busca de um maior rigor científico na análise”. Assim, como o próprio nome diz, a proposição é a unidade de análise do discurso. E Pires esclarece ainda:

Se falar é enunciar, as marcas do enunciador e da situação da construção dos enunciados estão presentes no discurso. Adotar como unidade de análise a Proposição é fugir das relações sintáticas para mergulhar na situação de quem fala e sobre o que fala. (PIRES, 2008, p. 92).

Esse ‘quem fala’ de que trata Pires pode ser visto à luz da gramática tradicional como o emissor em discurso direto. Em nossa perspectiva, assumimos a teoria de que este emissor dá lugar a um ‘sujeito reflexo’. Não há nas redes sociais as figuras de emissor e receptor de forma clara e definida, tal como no esquema jackobsoniano. O que parece existir é o sujeito atravessado pelo desejo de compartilhar uma existência em suas ações diárias e contínuas. Sendo um meio de comunicação escrita com fortes influências do discurso oral, uma vez que as postagens são frequentemente realizadas em linguagem informal e cotidiana, temos como a priori a condição intermediária entre os dois discursos – oral e escrito –, com a presença clara de um emissor, mas a presença apenas supostamente marcada de um interlocutor.

Também é necessário observar que, nas redes sociais, não existe uma temporalidade demarcada. A linha do tempo no Facebook (Fbk), como já dissemos, permite aos usuários um ir e vir continuado, inclusive com a possibilidade de apagar postagens antigas ou de duplicá-las, republicá-las. Esse é o sujeito a que chamamos reflexo, devido a essa possibilidade de fletir-se e refletir-se em suas ações, provocador não somente de um presente contínuo, mas de um passado contínuo.

 

2 Resultados e Discussão

Os textos foram coletados nas páginas dos perfis do Facebook, em ordem de postagens durante dois dias após o anúncio de sessões de quimioterapia pelos autores das postagens escolhidos neste estudo. Não determinaremos aqui a data exata da postagem. Esse critério foi definido pela pesquisa por tornar mais presente a vivência do trauma e a utilização da rede social para o fim de construção da história de vida dos sujeitos postantes. Pareceu-nos que a possibilidade de entrar em contato com as pessoas e com o mundo pelas redes sociais é uma ancoragem no mundo. As postagens coletadas foram organizadas segundo a perspectiva de Bertaux (2010), e distribuídas em matrizes discursivas.

As matrizes discursivas foram elaboradas como meio de análise da organização discursiva dos sujeitos ‘postantes’, segundo a proposta de Pires (2008), considerando os indicadores de sequência discursiva e de efeitos de linguagem que conferem sentidos aos textos. Observemos parte das duas amostras já citadas na sessão anterior, aqui organizadas em Núcleos de Referência e em Equivalentes Paradigmáticos:

quadro1

Chamamos FBk1 e FBk2 aos dois perfis estudados. No que diz respeito aos aspectos textuais, podemos identificar, nas narrativas analisadas em nosso estudo, escolhas lexicais indicativas de uma linguagem informal, natural do ambiente em redes sociais. As passagens indicam a consciência metadiscursiva constante desses usuários especiais, que conhecem a utilidade da rede social para divulgação de sua rotina. É comum, como em FBk2, o uso das redes sociais como maneira de compartilhar, não somente a própria opinião, mas a opinião de outras pessoas. O compartilhamento é um recurso dialógico no Facebook, que permite a relação metadiscursiva mais evidente. Por meio do compartilhamento no ambiente virtual, os usuários podem expressar a sintonia de ideias com seus co-postantes.

As trocas efetivas por meio de mensagens nas postagens desempenham o papel do diálogo, embora afirmemos ainda que as figuras de emissor e receptor não estejam claramente definidas, senão apenas metaforizadas nas ferramentas curtir – comentar – compartilhar, como já citamos anteriormente. Além da presença metafórica do receptor, marcada por elementos discursivos explícitos como ‘vocês’, ‘gente’ (FBk1) ou implícitos como em ‘pessoas’ ou ‘mensagens’ (FBk2), vemos que os núcleos de referência nos encaminham ao sentido pragmático da ação de comunicação implicada pelo atravessamento da dor, do reconhecimento da condição de doença, da vida cotidiana de um paciente de câncer que enfrenta uma situação dura e dramática ou seja, o uso recorrente da palavra para descrever uma rotina e não o uso da história para descrever um fato.

É importante perceber que a representação biográfica captura do tipo narrativo seus princípios de organização, pois é a narrativa que confere papéis aos personagens de nossas vidas; é a narrativa que constrói as circunstâncias, as ações, as causas, o próprio enredo, enfim “é a narrativa que faz de nós o próprio personagem de nossas vidas” (DELORY-MOMBERGER, 2008: 37).

Procuramos perceber não só mecanismos discursivos, mas também perceber elementos textuais, e notamos, com já havia dito Pophillat (apud MAIA-VASCONCELOS, 2008), que a grande questão quando se narra sobre si em situação de crise, não é mais de querer dizer tudo, mas tentar todas as maneiras de dizer. Como a rede social Facebook permite maior liberdade de postagem que outras redes, não limitando tamanho do texto, incluindo imagens e permitindo que um perfil possa divulgar outro perfil, vemos nos textos de nossos sujeitos, outros textos que aqui não foram incluídos. A exemplo disso, FBk1 e FBk2 divulgam aqueles a quem chamam ‘colegas de batalha’. Esse fato nos levou a considerar em nossas análises a concepção de um sentido pragmático de inserção em um grupo, ao mesmo tempo que de reflexividade individual e interacional. Os sujeitos doentes de câncer parecem se inserir em um contexto específico que os aproxima, sem isolá-los do mundo exterior, uma vez que as redes sociais são um forte sistema de inclusão. Deste modo, construir sua história em compartilhamento com outros colegas de infortúnio ajuda a criar não somente uma história individual, mas congrega histórias múltiplas que vão construir uma história coletiva.

As trocas de experiência são feitas por exposição. Apesar, entretanto, de haver uma interação constante e uma frequente divulgação de campanhas de doação de sangue e de medula, esses perfis não mantém entre si uma história conversada, não há uma construção ajustada e claramente exposta das histórias e das experiências. Mesmo fazendo parte de um grupo, essas pessoas não dialogam na construção de suas identidades que se unem em coletividade. Seus contatos aparentes nas redes sociais não podem ser considerados um diálogo direto, uma vez que não há uma situação de interlocução, há ausência de situacionalidade comum entre locutor e interlocutor, emissor e receptor. Não existe uma troca de turnos que se caracterize como dialogada, ainda que se manifeste por um sistema de perguntas e respostas, uma vez que não há a presença simultânea dos interlocutores movendo um diálogo. Existe um cancelamento da situação de produção ao mesmo tempo em que se gera uma situação de autonomia semântica dos textos postados, que provoca o que Ricoeur chama de hiato entre a "identificação" e a "mostração", uma vez que a linguagem, neste caso, perde seu caráter ostensivo.

Quando escrevemos, criamos um texto e, independente de qual seja, sempre pensamos no leitor/interlocutor. Na autobiografia não é diferente, porém nas redes sociais a figura do receptor nem sempre é claramente denominada, o que nos levou a considerar a ruptura do esquema jackobsoniano da comunicação. Observemos o trecho retirado de um perfil no Facebook:

FBkDL: Ainda tô pra ver terapia melhor do que escrever, eu sempre recomendo isso pra quem está na luta. Quando levantei de manhã meu humor estava péssimo, e continuou assim até o fim da tarde, mas foi só dar uma passada no blog e escrever algumas linhas que todo mal estar (psicológico) desapareceu. Quem não adota a escrita como terapia, não sabe o que está perdendo. :-)

Vemos aí dois pontos já vistos no quadro dos núcleos de referência: primeiramente a consciência metadiscursiva do autor que se presta a escrever. Em segundo lugar, a não-presença do interlocutor. Com quem dialoga o usuário? Quem seria o interlocutor de FBkDL? Há claramente um eu que se apresenta e se compromete, mas a figura do receptor não se representa senão metaforicamente por meio da expressão vaga ‘quem’ e da elipse de um sujeito na declaração final. Seria esse quem o leitor comum ou expressamente um outro doente de câncer? Assim sendo, a equivalência paradigmática seria atravessada pela obrigatoriedade do diagnóstico de câncer para que o núcleo de referência representado pela expressão ‘quem’ fosse indicador de um possível interlocutor que também devesse escrever e fizesse sentido.

Há uma consciência da escrita. A utilidade da escrita na vida desses neoautores é sempre algo notificado por eles. Não é vista como algo que servirá apenas para eles, uma vez que estão tendo sua aprendizagem através da própria experiência e sim, para as outras pessoas, sejam aqueles que estejam passando por algo semelhante ou aqueles que se interessam por motivos outros que não a própria vivência.

 

Considerações Finais

Tratar de autoria nos remete logo à sua matéria-prima, a escrita. Mas, a partir do momento em que focalizamos a autoria como ponto principal, a escrita assume um lugar distinto do tradicionalmente ocupado nas pesquisas científicas, mais precisamente, nas pesquisas linguísticas, o estudado no processo de alfabetização por exemplo. Sendo assim, perceber o processo de autoria narrativa nas narrativas de pessoas que passam por uma situação traumática não é diferente, pois nessa área temos um sujeito que se inscreve como garantidor das verdades dos fatos. É através da visão de mundo deste sujeito, vivendo no momento da crise sua escrita, seu cotidiano, suas memórias e suas lembranças que a narrativa se construirá.

A partir da autonarrativa, podemos desdobrar toda e qualquer abordagem linguística, seja pelas marcas discursivas, seja por entradas lexicais, já que nossas análises concretizaram-se em textos escritos. Os autores que surgem nas redes sociais, também considerados neste estudo como circunstanciais, tramitam entre o formal e o informal para desvendar-se ao mundo da escrita e utilizam-se de recursos discursivos que referenciam sentidos às suas narrativas propostas, o que ficou claro nas análises das amostras. Neste estudo apresentamos e discutimos sobre a APD e sua possibilidade de análise no desenvolvimento da autonarrativa.

Não se trata aqui de propor uma maiêutica do discurso proferido pelos sujeitos narradores, mas, antes, uma visão sobre as vertentes que colocam em evidência o desenvolvimento do trabalho biográfico. A recorrência nas autonarrativas em redes sociais expressam o sentimento do narrador e sua participação na esfera social em interação com o outro. E como já afirmou Saussure (1969), a língua é um fato social, e (auto)biografia, em si, prioriza a vida, o social, os sujeitos, os atores do processo de criação, suas reflexões e suas escolhas relativas à escrita sobre seu percurso e o faz, neste estudo, por meio do registro escrito/virtual em redes sociais. Este registro materializa certas informações que referenciam os fatos, e estes fatos realmente aconteceram no passado e são revividos, ao passo que buscamos, em nossa memória, lembranças para narrarmos sobre nós mesmos.

A autonarrativa é a iniciativa de ir em busca do tempo perdido, como Proust (apud MAIA-VASCONCELOS, 2005), para enfim encontrar, nos guardados da escrita, a conexão precisa entre os fatos. Esse encontro revela significações propulsoras do entendimento sobre a distinção entre escrever, como possibilidade de transcrever palavras, e escrever, como direito de transcrever sentidos.

A elaboração da autonarrativa propõe, entretanto, uma renovação da discussão sobre os gêneros textuais. Por isso, busca-se, nesses textos, a construção de uma consciência de que a elaboração de um texto biográfico marca um novo caminho para os estudos linguísticos, e que estes terão de ser desprendidos da mera observação de fatos ligados às estruturas da língua, pois, sendo a língua, antes de tudo, um elemento de ligação social e histórica, sua manifestação se sobrepõe à sua organização formalista, o que põe as redes sociais como um novo espaço de construção de histórias de vida.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 21/02/2014
Aceito em 25/03/2014

 


Revista Científica On-line Tecnologia – Gestão – Humanismo - ISSN: 2238-5819
Faculdade de Tecnologia de Guaratinguetá
Revista v.3, n.1 – maio, 2014