ARGUMENTOS: O EXEMPLO, A ILUSTRAÇÃO E O MODELO

ARGUMENTATION BY EXAMPLE, ILLUSTRATION AND MODEL

LA ARGUMENTACIÓN POR EJEMPLO, ILUSTRACIÓN Y MODELO

Ana Lúcia Magalhaes1 (almchle@gmail.com)

1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC)

Resumo

O enfoque deste texto é a argumentação pelo exemplo, ilustração e modelo, e a ironia, conforme classificação de Perelman e Tyteca, 1999. Foram escolhidos para análise três artigos publicados no Jornal “O Estado de São Paulo” e se encontram como Anexos. O primeiro deles, um artigo sobre as lágrimas, publicado no dia 27 de março de 1989 (anexo I); o segundo, referenciado como “réplica”, é uma contestação ao primeiro e foi publicado em 24 de abril de 1989 (anexo II) e o terceiro, uma resposta à réplica, denominado “tréplica”, publicado em 24de abril de 1989 (anexo III). As três peças servem como rico material argumentativo, conforme classificação estabelecida pelos autores citados.

Palavras-chave: Retórica, Argumentação, Exemplo, Ilustração, Modelo.

Abstract

This text studies argumentation by example, illustration and model, and also irony. Three articles, herein attached, published in the daily newspaper “O Estado de São Paulo” were selected for analysis. The first article (attachment I), published on March 27, 1989, is about controlling tears; the second one, labeled as “reply” (attachment II) is a rebuttal of the first article. Finally, the third one is a rejoinder, published on April 24, 1989. The three pieces provide rich material on the theme as classified by Perelman & Tyteca (2005).

Keywords: Logistics, Supply Chain, Reverse Logistics

Resumen

Este texto estudia la argumentación por ejemplo, ilustración y modelo, y también la ironía. Tres artículos, fijados en los anexos, publicados en el diario "O Estado de Sao Paulo" fueron seleccionados para el análisis. El primer artículo (anexo I), publicado el 27 de marzo de 1989, trata del control de las lágrimas; el segundo, llamado "respuesta" (anexo II) es una refutación del primer artículo. Por último, la tercera es una dúplica, publicada el 24 de abril de 1989. Las tres piezas proporcionan un rico material sobre el tema según la clasificación de Perelman y Tyteca (2005).

Palabras clave: Retórica, argumentación, ejemplo, ilustración, modelo.

 

Introdução

A Retórica tem sido colocada à prova ao longo do tempo. Na Antiguidade, com Aristóteles, ligava-se à Dialética e referia-se à arte de falar em público de modo persuasivo, relacionada especificamente ao discurso falado, com o intuito de obter a adesão a uma tese apresentada.

A meta da retórica, adesão dos espíritos é a mesma da argumentação, mas a palavra retórica foi sendo cada vez mais ligada ao discurso oral, até alcançar uma forma pejorativa de utilização, quando o termo passou a se aproximar de discurso empolado e vazio de sentido. Isso porque ela se limitou, em parte de sua evolução histórica, ao estudo e utilização das figuras.

Felizmente o termo foi retomado por Perelman, na década de 60 e, graças aos inúmeros pontos de contato com a argumentação, renovado. Comparativamente, a retórica antiga tem mais semelhanças com a atual do que divergências. A neo-retórica parece uma continuidade dos estudos retóricos. O que há de novo é a integração que pretende minimizar a diferença entre ciências humanas, ciências do discurso e das matemáticas. Para isso, as teorias da argumentação desenvolveram-se nos postulados democráticos e se embasaram nos valores, preferências e decisões, aceitando limites e imperfeições, trabalhando-a no nível do provável. Há que se levar em conta hoje a universalidade a que se está sujeito, bem como a diversidade de argumentação que nela está embutida.

Como se observa, a retórica avança e se entrelaça à argumentação. O que conserva da retórica tradicional é sua idéia de auditório: mão mais um público reunido numa praça, mas um público diferenciado, incluindo aí o leitor. A retórica, portanto, ampliou-se e se aplica à palavra escrita, e necessita maior elaboração.

Seu caráter prático e teórico impõe-se no Direito, Ética, Política e Psicanálise e possibilita confronto e intercâmbio com a Pragmática Linguística, Semiótica Discursiva, Teoria do Texto e Discurso e Análise Conversacional. Contribui nos estudos da Linguagem referentes à conscientização do discurso. Conjuga as capacidades intelectivas, sensoriais e afetivas, utilizando argumentação e persuasão, conciliando conhecimento e afetividade, sedução e prazer. Em concepção ampla e específica, a retórica é uma visão de vida que implica tomada de posição, ação no mundo e competência retórica por parte dos indivíduos.

Assim, é vista não mais como estudo das figuras, e sim como sinônimo de argumentação, cujo campo não é definitivamente, o da evidência. Não se argumenta sobre o provado, sobre o evidente, mas sobre o verossímil, o plausível. Argumenta-se para estimular a polêmica, a reflexão, construir debates, entrevistas, relatos; incentivar a reflexão crítica; examinar apelos, propostas e contrapropostas; enriquecer a visão de mundo através da diversidade de confrontos, levando a juízos de valor; estabelecer diálogos, partilhando saber e vivência; estruturar troca comunicativa; buscar solução nas situações de conflito.

 

1 Classificação dos Argumentos

Muitos são os pesquisadores que estudaram e continuam a estudar a argumentação, porém para efeito deste artigo, tomaremos o que Perelman e Tyteca estabeleceram no Tratado da Argumentação, publicado em 1958. Tal obra é considerada como o renascimento da Retórica. Conforme tais autores, a Retórica caminha lado a lado com a argumentação e tem como objetivo a busca da adesão dos espíritos a uma dada tese por meio da persuasão. Consideram ainda que o ato de informar não existe em estado puro, servindo antes para convencer e persuadir do que por si próprio. A pretensão é analisar os componentes retóricos de uma troca de correspondência entre um leitor de jornal e o autor de um artigo ali veiculado.

Os argumentos, conforme Perelman, estão classificados em:

a) Argumentos de ligação, permitem transferir para a conclusão a adesão concedida às premissas. São desse grupo: a) os argumentos quase lógicos, que se aproximam dos raciocínios formais sem possuírem o mesmo rigor e precisão deles, e podem ser reforçados por argumentos de outro tipo, além de pressuporem uma adesão a teses de natureza não formal; b) os argumentos baseados na estrutura do real, que se valem dessa estrutura para estabelecer uma solidariedade entre juízos admitidos e aqueles que se quer evidenciar, que podem ser tratados como fatos, verdades, presunções e c) os argumentos que fundam a estrutura do real, objeto de nossa análise que, como o próprio título informa, esteiam a argumentação pelo recurso ao caso particular. Estes últimos se dividem em: exemplo, ilustração e modelo, analogia e metáfora.

b) Argumentos de dissociação, visam separar elementos que foram ligados anteriormente pela linguagem ou pela tradição. São eles: a) os pares filosóficos, b) os pares antitéticos e c) os pares classificatórios.

 

2 A argumentação pelo exemplo, a ilustração e o modelo/antimodelo

O texto jornalístico dever ser, antes de tudo, convincente, pois é escrito para informar o leitor. No entanto, não são apenas notícias que são ali veiculadas: existem os artigos e os editoriais que, não necessariamente vinculados à verdade, deixam transparecer a opinião dos jornalistas. O texto que estamos abordando é um artigo, portanto, trabalha não apenas com o convencimento ou com a verdade, mas procura persuadir o leitor pela emoção, pelo pathos.

Além dos fatos e das verdades, os auditórios admitem presunções, que gozam do acordo universal e às quais, por não serem máximas ou verdades, necessitam reforço de outros elementos para que a adesão a elas seja efetiva. As presunções são, no mais das vezes, admitidas de imediato, como ponto de partida das argumentações.

Se a retórica é a arte de argumentar e persuadir, se o jornal existe para informar e vender notícia, se esse diálogo pressupõe um locutor (jornal-autor) e um interlocutor (leitor) com quem ele pretende dialogar, argumentar, e a quem ele pretende persuadir, o leitor/público será o auditório, ao qual ele precisa cativar, buscar adesão e adequar seu discurso, seu texto.

Nos parágrafos seguintes pretende-se analisar as ligações que fundamentam o real sem, contudo, esgotá-las, pois além do exemplo, ilustração e modelo/antimodelo, que se agrupam no fundamento pelo caso particular, existem ainda os raciocínios por analogia e a metáfora, nesse mesmo grupo dos argumentos [que fundam a estrutura do real] e que não serão tratados.

2.1 O Exemplo

Argumentar pelo exemplo é chamar para dentro de uma argumentação um exemplo que lhe fundamente, que lhe dê forças. O precedente, em Direito, é considerado como exemplo; os casos particulares, em ciências, são tidos como exemplo e servem de argumentação em defesa de uma tese.

Fenômenos particulares evocados uns em seguida de outros são considerados exemplos. No texto “Por que tanta lágrima”, de Eurico Penteado, publicado no Jornal “O Estado de São Paulo”, Anexo I, o autor se vale abundantemente de exemplos para reforçar a argumentação e fundamentá-la. Inicia sua matéria partindo de um exemplo histórico para introduzir, ainda que de forma sutil, no terceiro parágrafo, o tema de seu artigo.

Em uma de suas reminiscências [...] O rapazote, que mordia os lábios para controlar-se, o encarou e respondeu com firmeza: ‘Não posso chorar, porque sou homem; mas também não posso rir, porque dói demais’.

Acrescenta outro exemplo com a intenção de tornar seu argumento mais real:

Cremos ter mencionado por essas colunas, há um par de anos [...] uma antiga história que ilustra o ponto [...]. E o veterano respondeu ‘Possivelmente um herói, porém não um cavalheiro’ [...] mas sua imagem perante os munícipes teria sido bem melhor do que é, após sua lacrimosa reação.

Outros exemplos são citados, amparam e solidificam sua argumentação ao longo do discurso. O escritor utiliza-se das falas de um filósofo, concluindo por conta própria, como reforço da sua argumentação. Para nos assegurarmos de que estamos diante de uma argumentação pelo exemplo, nada igual, porém, às exposições em que ela se apresenta formalizada, ou seja, em casos de citações renomadas:

Rabelais dizia que ‘le rire est le propre de l’homme’. Mas não nos consta que jamais alguém tenha dito que chorar seja próprio de homens

O autor apela ainda para exemplos extraídos dos ditos populares:

Não podia chorar porque era homem”... “Desconfie de homem que chora e de mulher que não chora.

O exemplo invocado deverá usufruir estatuto de fato, pois a grande vantagem de sua utilização é dirigir a atenção a esse estatuto.

Por sua vez, a rejeição ao exemplo enfraquecerá a adesão à tese que se queira provar. Isso porque a escolha de um exemplo, enquanto prova, compromete o orador, como espécie de confissão. É o que ocorre no Anexo II, que denominamos réplica ao artigo do Anexo I, publicada no mesmo jornal, em 24/04/89 que, exatamente por se tratar de artigo bem fundamentado, mereceu não só a publicação como até uma resposta do autor, Anexo III, a que chamaremos tréplica (24/04).

O autor do Anexo II inicia seu texto com uma peroração, em que declara sua “pequenez” e elogia a erudição do autor a quem irá contrapor-se:

Perdoe-me, Sr. Eurico Penteado, se não tenho sua enorme erudição e por não tê-la, não consigo escrever de forma tão bonita quanto o faz.

Seu texto possui vários tipos de argumento: a argumentação pragmática “torna-se vital um cuidado imenso com as antinomias, para que os choques não sejam fatais nem letais”; o argumento de identificação “não basta um saber imenso e o emprego de termos inusitados para se construir uma coluna”; o argumento por divisão “Pelé chorou [...] quantos de nós [...] quantos mais não verteram lágrimas”. Há outros tipos de argumentos que não pretendemos especificar por fugir ao escopo desse trabalho.

Ele também se utiliza do exemplo citado dentro da argumentação por divisão, para fundamentar e fortalecer sua tese, conseguindo a adesão do público.

Pelo menos uma vez, no nascimento, o homem chora. Pelé chorou ao ganhar a primeira Copa do Mundo e, apesar disso (ou graças a isso) ganhou mais duas posteriormente. Quantos de nós não se dobrou em lágrimas no nascimento do primeiro filho? E quantos mais não verteram pranto em memória a um ente querido perdido?

Cita ainda, a título de exemplo (voltaremos a esse ponto quando falarmos em Ilustração e Modelo), um fato retirado da História, como ele mesmo revela, utilizado como argumentação pelo exemplo hierarquizado, permeado de ironia retórica:

eu também poderia ter corrido atrás de exemplos perdidos na História e chegar a uma conclusão totalmente oposta à sua. Não o fiz por não me permitir concluir com tão poucos elementos e por me ocorrer que tenho de cabeça um único exemplo tirado da Bíblia (que me merece no mínimo o mesmo crédito que Lincoln), em João 11:35, onde se lê: “Jesus chorou.”.

Afasta, com essa argumentação pelo exemplo, a tese de seu oponente, que sustenta que “homem que é homem não chora”. Aqui os exemplos interagem, “permitindo especificar o ponto de vista sob o qual os fatos anteriores deveriam ser considerados” (Perelman: 404). É evidente que os enfoques de ambos são diferentes, mas o que se percebe é que o autor do Anexo II se aproveita dos mesmos argumentos utilizados pelo autor do Anexo I para contestá-lo e vai além, quando alerta os leitores dos perigos da utilização inadequada de exemplos generalizados.

No Anexo III observa-se a citação de novos exemplos e a tentativa de uma explicação mais adequada. No Anexo I, o autor sustenta, de maneira generalizada, que “homem não chora”. É evidente ao leitor mais atento, que ele se refere a uma classe específica de homens – os políticos, aos quais ele chama de choramingas. Mas no primeiro texto, os homens que ele cita como exemplos estão associados a qualidade, a sinônimo de hombridade. Não deixa claro que se refere a um tipo de homens, antes generaliza a tese e a reafirma com muitos exemplos.

A réplica (Anexo II) recusa a tese generalizada de que “homem não chora”, com seu contrário, quando afirma que “homem chora sim” e a sustenta com vários exemplos. O Anexo III está permeado de ironia retórica.

2.2 A Ilustração

Argumentar pela ilustração difere da argumentação pelo exemplo em razão do estatuto da regra que um e outro apoiam. Enquanto o exemplo fundamenta a regra, a ilustração reforça a adesão a uma regra conhecida e aceita.

Tomando o texto do autor do Anexo II, na passagem em que utiliza a citação bíblica “Jesus chorou”, podemos nos perguntar: seria possível considerar este como um argumento pela ilustração?

Nesse caso não parece haver dúvidas de que, se Jesus, tendo sido homem, chorou e nem por isso deixou de sê-lo, os homens em geral não perderiam sua condição (de homens) pelo mesmo motivo, nem seriam diminuídos em sua hombridade. Encarando como ilustração ou exemplo, tal argumento parece conter em si força e autoridade e marca a presença do autor.

Embora sutil, a pouca diferença entre exemplo e ilustração não é irrelevante, pois permite compreender que, não só o caso particular serve para fundamentar a regra, mas também a regra é enunciada para vir a apoiar casos particulares que pareciam dever corroborá-la. É preciso lembrar que a ilustração contém em si um juízo de valor, enquanto o exemplo, não.

Considerando os esclarecimentos entre exemplo e ilustração, é possível responder que o argumento “Jesus chorou” não se trata de exemplo (embora utilizado como tal) nem ilustração, pois não supõe uma concepção e um critério de verdade e do método. O autor do Anexo III utiliza-se da ilustração novamente quando cita Wilde:

Creio que foi Oscar Wilde quem disse certa vez (referindo-se obviamente às pessoas que escrevem) que no mundo só existe uma coisa pior do que ser comentado desfavoravelmente: é não ser comentado.

A ilustração inadequada não é invalidante, uma vez que a regra não está sendo questionada. Quando muito, o enunciado da ilustração inadequada repercute mais naquele que a formula e dá provas de sua incompreensão, de seu desconhecimento, do sentido da regra.

A ilustração visa a aumentar a presença e não tende a substituir o abstrato pelo concreto nem transpor as estruturas para outra área. É verdadeiramente um caso particular, auxiliando a regra que até pode servir para enunciar. A ilustração é escolhida, às vezes, pela repercussão afetiva, como no caso de Aristóteles:

... ora, não há ninguém que não deseje ver claramente o fim em tudo. É isso que explica que, tendo chegado às balizas do estádio onde se faz a curva, os corredores ficam ofegantes e sucumbem, ao passo que, antes, enquanto tinham a meta diante dos olhos, não sentiam o cansaço.

Outra ilustração encontra-se no Anexo III, quando o autor especifica a citação de Rabelais no texto origem. E aqui temos, além da ilustração, a citação, que se trata de outra categoria de argumentação e lhe apoia. As citações, aliás, servem para reforçar teses apresentadas e procedem de fontes seguras:

As palavras de Rabelais a que me referi (popularizadas ...) eram estas: ‘Et maintenant riez, car le rire est le propre de l’homme’. E eu escrevi, em meu artigo: Rabelais dizia que le rire est le propre de l’homme’. Portanto, sem o interpretar nem sequer traduzir, citei ‘ad litteram’ o abade de Meudon. Mas o meu censor afirma que o distorci.

O autor do Anexo III se defende de uma possível acusação de “distorção” dos ditos de Rabelais. Não há, na verdade, distorção às palavras, e sim uma interpretação distorcida por parte do autor. Em outras palavras, se Rabelais foi explícito ao dizer que “o riso é próprio do homem” e não o foi com relação ao choro, concluiu o autor que chorar não seria próprio do sexo masculino. Não procede, portanto, afirmar que os ditos de Rabelais foram distorcidos. O autor do Anexo II refere-se à distorção da idéia e não os ditos. Ele se aproveita para exemplificar a própria asserção do autor do Anexo I, enfatizando-a, além de dar um toque irônico ao texto “é preciso ter cuidado imenso com as antinomias” para que não sejam causa de confusões.

Certas comparações ilustram uma qualificação genérica por meio de um caso concreto. O autor do Anexo II utiliza-se de argumento por comparação:

Perdoe-me se não tenho sua enorme erudição [...], não consigo escrever de forma tão bonita [...]; mais lícito pelo menos do que distorcer os ditos de Rabelais; [...] que merece, no mínimo, o mesmo crédito que Lincoln.

2.3 Modelo e Antimodelo

A argumentação pelo modelo ocorre quando pessoas ou grupos de prestígio valorizam os atos. O valor da pessoa, reconhecido previamente, constitui a premissa da qual se tirará uma conclusão preconizando um comportamento particular. Não se imita qualquer um. Para servir de modelo é preciso um mínimo de prestígio. Às vezes trata-se de um modelo a ser seguido por um pequeno grupo, às vezes é um padrão a ser seguido em determinadas circunstâncias.

Com base nessas considerações, pode-se retomar o argumento da réplica “Jesus chorou” e encará-lo como modelo e não como exemplo ou ilustração, sem perigo de incorrer em erros. O exemplo é genérico, a ilustração contém uma regra pressuposta e o modelo necessita prestígio comprovado para ser seguido como padrão. O modelo indica conduta a ser seguida. O fato de seguir um modelo reconhecido, de restringir-se a ele, garante o valor da conduta, portanto, o agente que essa atitude valoriza pode servir de modelo. Quem um modelo mais competente e melhor reconhecido universalmente que a figura de Jesus? Conclui-se que, consideradas as especificações, o argumento utilizado na réplica é um modelo e não exemplo.

A existência da argumentação pelo modelo mostra que os modos de argumentação se aplicam às mais diversas circunstâncias, o que significa que a técnica argumentativa não é ligada à situação social definida nem ao respeito a estes ou àqueles valores.

O modelo cuida de sua conduta, pois seus deslizes justificam outros. É Pascal quem constata:

O exemplo da castidade de Alexandre não fez tantos castos quanto o de sua embriaguez fez intemperantes. Não é vergonhoso não ser tão virtuoso quanto ele e parece desculpável não ser mais vicioso do que ele.

Utiliza-se o autor do Anexo III da argumentação por divisão “começa por aludir à minha ‘enorme erudição’, a meu ‘saber imenso’ e à minha faculdade ‘de escrever de forma tão bonita’” e procura esclarecer e explicar sua intenção de falar das lágrimas de um grupo específico de homens e não de todos os homens. O leitor do primeiro texto, no entanto, percebe que o replicante foi, no mínimo, feliz. Só o fato de merecer tréplica o coloca como crítico competente, pois soube se aproveitar do uso da generalização e do mau uso de exemplos.

Na tréplica, o autor do primeiro texto analisa um a um os parágrafos de seu crítico e, em cada um tenta se redimir diante do leitor. Utiliza-se novamente da argumentação por divisão “quando se aposentam, ou se despedem, ou transmitem o cargo; [...]”. Essa explicação serve, no entanto, para fortalecer a posição de seu crítico.

Ele se poupa de alguns comentários, ou seja, utiliza-se do silêncio argumentativo, do silêncio retórico em alguns pontos de seu texto, com a intenção de deixar por conta do leitor as conclusões que lhe parecem óbvias.

O silêncio retórico é melhor utilizado ainda pelo autor do Anexo II, quando declina de responder a tréplica. Esse silêncio pode ser lido como forma contundente, uma vez que os exemplos citados pelo autor do Anexo III fortalecem a tese da réplica, de que homem chora em muitas ocasiões. Portanto, a tréplica mais se aproxima da réplica do que dela se distancia.

O antimodelo é aquele que não deve ser seguido, ou melhor, que deve ser evitado. Os pais, com frequência valem-se do antimodelo para fortalecer o proibido. Se a referência a um modelo possibilita promover condutas a serem seguidas, seu contrário, o antimodelo permite afastar-se delas, conforme exemplo de Montaigne que acredita ser, em alguns casos, mais eficaz.

Pode haver alguns iguais a mim, que me educo mais contrariando os exemplos do que os imitando e mais deles fugindo do que os seguindo. Nessa espécie de disciplina pensava o velho Catão, quando disse que os sensatos têm mais que aprender com os loucos do que os loucos com os sensatos; e Pausânias conta que um velho tocador de lira costumava obrigar seus discípulos a irem ouvir um mau músico que morava em frente, para aprenderem a odiar suas desafinações e compassos errados...

O antimodelo impele à mudança de atitude em razão da repulsa ao erro. Nesse caso, busca-se distinguir alguém pela ação contrária ou pelo afastamento. É preciso, no entanto, conhecer os dois lados da conduta, senão perde-se o referencial: “afastar-se de Sancho Pança só é concebível para quem conhece a figura de Dom Quixote; a visão do hilota só pode determinar uma conduta para quem conhece o comportamento de um espartano aguerrido” (Perelman: 418).

 

3 Ironia

Embora a proposta deste trabalho seja analisar a argumentação pelo exemplo, pela ilustração e pelo modelo/antimodelo, não se pode deixar de observar a ironia, figura retórica que permeia os três textos.

A ironia, genericamente, é o modo de expressão que consiste em dizer o contrário do que as palavras significam. A ironia socrática é a arte pela qual Sócrates interrogava um discípulo sobre pontos aparentemente afastados do assunto e o conduzia, por um jogo de perguntas sucessivas, a voltar ao tema inicial, colocando-o em face de uma grande contradição, na qual o discípulo se embrenhava sem perceber. O autor da tréplica utiliza-se fartamente da ironia (não socrática) em sua defesa e de citações:

Creio que foi Oscar Wilde quem disse certa vez (referindo-se obviamente às pessoas que escrevem) que no mundo só existe uma coisa pior do que ser comentado desfavoravelmente: é não ser comentado. [...] me dá a grata satisfação de ter escapado, desta feita, ao que Wilde considerava o pior. Realmente, fui comentado. Desfavoravelmente, é certo, mas, enfim (seja Deus louvado!), fui comentado.

É profundamente irônico quando diz que foi comentado, “desfavoravelmente, é certo, mas enfim (seja Deus louvado!)”. Em alguns pontos sua ironia beira ao sarcasmo. A finalidade da ironia não é agredir, embora, muitas vezes seja essa a utilização que dela se faz por se tratar de argumentação indireta.

A ironia ocorre quando a ilustração é voluntariamente inadequada e não pode ser utilizada nos casos em que pairam dúvidas sobre as opiniões do orador. É empregada porque há utilidade e seu uso é possível em todas as situações argumentativas.

Embora concorde com a presença de ironia no Anexo II, não se pode afirmar que o autor, no início do texto esteja dela se utilizando, como afirma o autor do Anexo III, com argumentos por divisão e comparação no mesmo segmento: “A ironia é tão direta, tão evidente, tão destituída de qualquer ‘nuance’, que me poupa o trabalho de negar possuir qualquer erudição...”

Perdoe-me, sr. Eurico Penteado, se não tenho sua enorme erudição e, por não tê-la, não consigo escrever de forma tão bonita quanto faz.

Se observada à luz da retórica de Perelman e de Aristóteles, não há bases suficientes para afirmar que esse parágrafo contenha ironia. Diz-nos Perelman: “através da ironia quer-se dar a entender o contrário do que se diz” e pareceria temerário encarar como irônica a peroração do autor do Anexo II. Ela demonstra, quando muito, um caráter duvidoso. Somente o autor seria capaz de esclarecer sua intenção nesse contexto. Faz-nos pensar em juízos de valor. A ironia para ser efetiva precisa de amplo conhecimento do assunto pelas partes e, no texto, não é possível essa afirmação, considerando que seu interlocutor é o público e não uma resposta pessoal ao autor, embora a ele se refira:

É por isso que escrevo, não ao senhor, mas a esta seção. Para que todos os que o leram e porventura possam tê-lo levado a sério saibam o quão faccioso o senhor foi [...] ao usar dois ou três exemplos clássicos e a partir deles construir toda uma lógica desconexa e infantil.

A ironia se torna mais eficaz quando dirigida a um grupo bem delimitado. Apenas a concepção que se faz das convicções de certos meios nos pode fazer adivinhar se determinados textos são ou não irônicos. É o que vemos no Anexo I, quando o autor se refere aos políticos que choram:

... abundaram (...) em nossos altos escalões administrativos, os chorões, isto é, os que, se não chegam a prantear, estão sempre ‘com os olhos marejados de lágrimas’, quando se aposentam (...) ou quando simplesmente sofrem uma derrota política.

A ironia é basicamente um processo de defesa. Por isso, para ser compreendida, exige conhecimento prévio das posições do orador, que devem ter sido colocadas em evidência pelo ataque. É o que se vê no Anexo III, particularmente no texto que segue, em que evidencia com aspas até o tom da ironia, enfatizando pensamentos que o autor do Anexo II teria tido com relação ao Anexo I:

O meu paciente censor (o fato de me ter lido é penhor de sua paciência) começa por aludir à minha ‘enorme erudição’, a meu ‘saber imenso’ e à minha faculdade ‘de escrever de forma tão bonita’.

Considerando-se o exposto sobre a ironia, podemos afirmar que o Anexo I apresenta um tom irônico, o Anexo II conduz-se através da ironia e que o Anexo III é nela fundamentado.

Considerações Finais

Creio que exploramos suficientemente os argumentos nas três peças, mostrando bem as diferenças entre exemplo, ilustração e modelo. Observemos, por fim, a forte presença da ironia nos três artigos:

A despeito de tudo isso, o Brasil progride. Será que progredimos durante a noite, enquanto os choramingas dormem?

O autor do Anexo I é irônico, encerrando e enfatizando o tom com que permeia seu discurso.

A despeito de tudo isso, senhores, o Brasil progride. Durante a noite, enquanto os choramingas dormem, mas também durante o dia, enquanto os vermes se incomodam com os grandes homens.

O autor do Anexo II ultrapassa o caráter irônico alcançando a mordacidade e a acusação explícita.

Suponho, sem resquício de modéstia, que seja eu um desses vermes. Confesso ignorar, porém, quais os grandes homens com que me incomodo. E estou certo de que nenhum deles se incomoda comigo...

Na conclusão do Anexo III, o autor além de irônico, vai além da mordacidade e a supera quando admite estar acima (ou abaixo) das opiniões que se poderiam conceber dele.

Como vemos, os três artigos se encaixam no tipo de discurso jurídico, apresentando uma tese, sua defesa, sua contestação, as provas, os precedentes, réplicas, tréplicas. Não nos cabe definir vencedores ou perdedores e sim apontar figuras e tipos de argumentação. Deixamos ao leitor o papel de jurado.

 

Referências

ARISTÓTELES. A Arte Retórica. São Paulo: Abril Cultural S.A., 1973.

GUIMARÃES, Elisa. Figuras de Retórica e Argumentação. In: MOSCA, L.L.S. Retóricas de Ontem e de Hoje. São Paulo: Humanitas Livraria, FFLCH/USP, 1997.

MEYER, Michael. Questões de Retórica: linguagem, razão e sedução. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2007.

PENTEADO, Eurico. Por que tanta lágrima. In: Jornal “O Estado de São Paulo”, São Paulo, 27 mar. 1989.

PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da Argumentação – A Nova Retórica. São Paulo: Livraria Martins-Fontes Editora Ltda., 1996.

SOUZA, Luciano R.R. Lágrimas. Por que não? In: Jornal “O Estado de São Paulo”, São Paulo, 27 mar. 1989.

PENTEADO, Eurico. Ainda as lágrimas. In: Jornal “O Estado de São Paulo”, São Paulo, 27mar. 1989.


ANEXO I – Por que tanta lágrima?

Eurico Penteado

Em uma de suas reminiscências Lincoln relembra que, quando era ainda modesto advogado, em Springfield, Estado de Illinois, certa manhã, ao dirigir-se para o escritório, viu que um garoto, com um dos pés ensanguentado, estava sendo carregado para a farmácia local.

Reconhecendo no rapazelho o filho de um amigo, Lincoln dirigiu-se também à botica, onde ficou sabendo que o menino, quando corria descalço pelas ruas, dera violenta topada em uma pedra, o que quase lhe quebrara o dedo grande do pé.

Enquanto o farmacêutico lavava o ferimento, Lincoln sentou-se ao lado do ferido e afetuosamente lhe perguntou como se sentia. O rapazote, que mordia os lábios para controlar-se, o encarou e respondeu com firmeza: “Não posso chorar, porque sou homem; mas também não posso rir, porque dói demais.”

Esse minúsculo episódio, tão singelamente narrado pelo grande presidente dos Estados Unidos ocorreu-nos à mente dias atrás, por um curiosos processo mnemônico a que talvez pudéssemos chamar associação de ideias por antinomia.

Isso aconteceu ao lermos nos jornais a notícia, fotograficamente documentada, de que, recentemente, um político de nossa capital se debulhou em pranto, ao tomar conhecimento de uma decisão contrária a suas ambições, de parte da Comissão Executiva do agrupamento político a que pertence.

Ao que se sabe, o lacrimejante paredro desejava ser prefeito da capital paulista, cargo para o qual estava notória e sobejamente despreparado – segundo opinião que só não é unânime porque dela discrepa o interessado.

Compreendemos perfeitamente seu desengano ante a decisão contrária dos correligionários, mas não logramos entender a reação lacrimosa que essa desilusão provocou.

Se sua capacidade de controle emotivo é deficiente, ou mesmo inexistente, seria admissível que reclamasse, que deblaterasse, ou que usasse até de palavras ou expressões que o decoro destas colunas não nos permitiria citar. Seria uma reação prosaica, deseducada, talvez mesmo chula – porém compreensível, por demonstrar, pelo menos, um resquício de virilidade.

Cremos ter mencionado por estas colunas, há um par de anos ou pouco mais, uma antiga história que ilustra o ponto: um velho diplomata inglês, embaixador aposentado, ter-se-ia encontrado certa vez com um jornalista que abruptamente, lhe desfechou esta pergunta: “Embaixador, qual a sua opinião sobre o general Campbel”?

E o veterano diplomata, pausadamente – britanicamente – respondeu: “Possivelmente, um herói; porém, não um cavalheiro.” (“Possibly a hero, but certainly not a gentleman.”).

Assim, se o ilustre prócer municipal tivesse vociferado seu ressentimento em vocabulário desconhecido das donzelas de outros tempos, não teria, naturalmente, reagido como um gentleman. Mas sua imagem perante os munícipes da Capital teria sido bem melhor do que é, após sua reação.

Rabelais dizia que “le rire est le propre de l’homme”. Mas não nos consta que jamais alguém tenha dito que chorar seja próprio seja próprio de homens.

Nossos antepassados, ao que parece, eram da mesma escola daquele garoto da história acima citada, que não podia chorar, “porque era homem”. Realmente, em nossa longínqua adolescência, ouvimos mais de uma vez este preceito, ou conselho muito em voga naqueles tempos: “Desconfie de homem que chora – e de mulher que não chora”.

Ainda acreditamos nesse conceito, mas reconhecemos que já agora, pelo menos no que respeita aos homens, tal crença principia a ser solapada pela dúvida. (E apenas desejamos que essa dúvida não seja como aquela de que falava um autor inglês do século XVIII, “melhor que a certeza de muita gente”.)

Parece indiscutível que o Brasil, nos últimos 15 anos, progrediu enormemente e passou, da inglória condição de país subdesenvolvido e terceiromundista, para a categoria bem mais prazenteira de potência emergente. Entretanto, pelo menos na Segunda metade desses três lustros, abundaram (íamos escrever predominaram, mas não queremos parecer exagerados), em nossos altos escalões administrativos, os chorões, isto é, o que, se não chegam a prantear, estão sempre “com os olhos marejados de lágrimas”, quando se aposentam, ou transmitem um cargo, ou se despedem (apenas funcionalmente) de colegas de alguns anos, ou quando recebem manifestação de apreço, ou quando simplesmente sofrem uma derrota política.

Quase diariamente os jornais noticiam episódios lacrimosos, ora nos debates parlamentares de Brasília, ora nas Assembleias Estaduais, ora em Ministérios e outras altas esferas administrativas. Mas estas já não detêm o monopólio das lágrimas: nossos colegas de O Estado de São Paulo noticiaram no último Domingo (pág. 55), com fotografia comprobatória, o acesso de choro um líder sindicalista.

A despeito de tudo isso, o Brasil progride. Será que progredimos durante a noite, enquanto os choramingas dormem?


ANEXO II – Lágrimas. Por que não?

Luciano R. Rocha Souza

Sr.: “Perdoe-me, sr. Eurico Penteado, se não tenho sua enorme erudição e, por não tê-la, não consigo escrever de forma tão bonita quanto faz.

Acontece que não basta um saber imenso e o emprego de termos inusitados para se construir uma boa coluna. Um boa coluna (quase um editorial) exige no mínimo responsabilidade, além de (é claro) um trabalho de pesquisa profundo e o correto emprego da faculdade, de que só os homens gozam, de refletir.

Em se tratando de acusações, então, mesmo que se possa esconder atrás de célebres citações de alguns grandes homens (deturpando-as um pouco), torna-se vital um cuidado imenso com as antinomias, para que os choques não sejam nem fatais nem letais.

Talvez o senhor não estivesse acusando ninguém e apenas ocupando um espaço pelo qual (creio eu) o senhor recebe e que por isso mesmo fosse obrigado a fazê-lo. Se assim foi, sr. Eurico, melhor seria que tratasse de abstrações quaisquer e que não trouxesse ao público em geral dúvidas a respeito de qualidades do homem, nem tampouco enlameasse por um único gesto, que por sinal o senhor mal ou nada entende, homens públicos.

E é por isso que escrevo, não ao senhor, mas a esta seção. Para que todos os que o leram e porventura possam tê-lo levado a sério saibam o quão faccioso o senhor foi (eu ia dizer maldoso) ao usar dois ou três exemplos clássicos e a partir deles construir toda uma lógica desconexa e infantil.

Pasmem, senhores leitores, mas é lícito ao homem chorar (mais lícito pelo menos do que distorcer os ditos de Rabelais). Pelo menos uma vez, no nascimento, o homem chora. Pelé chorou ao ganhar a primeira Copa do Mundo e, apesar disso (ou graças a isso) ganhou mais duas posteriormente. Quantos de nós não se dobrou em lágrimas no nascimento do primeiro filho? E quanto mais não verteram pranto em memória a um ente querido perdido? E se aconteceu um dia de um rapaz machucar um dedo (feito esse que me parece bem menos importante do que reunir uma multidão de 160.000 pessoas coesas e conscientes) e não chorar, isso pode tê-lo tornado quando muito um manco, nunca um herói. Além disso, senhores, talvez seja mesmo tempo de chorar. De raiva ou de emoção, de alegria ou dor, por medo ou desabafo.

Talvez seja essa a melhor hora para colocarmos para fora de nós todos os nossos sentimentos e que através deles consigamos construir um mundo melhor. Um herói, um grande homem, uma grande nação constroem-se com grandes feitos, muito suor e um pouco de lágrimas. Como fez o sr. Eurico, eu também poderia ter corrido atrás de exemplos perdidos na História e chegar a uma conclusão totalmente oposta à sua. Não o fiz por não me permitir concluir com tão poucos elementos e por me ocorrer que tenho de cabeça um único exemplo tirado da Bíblia (que me merece no mínimo o mesmo crédito que Lincoln), em João, 11:35, onde se lê: “Jesus chorou.

A despeito e tudo isso, senhores, o Brasil progride. Durante a noite, enquanto os choramingas dormem, mas também durante o dia, enquanto os vermes se incomodam com os grandes homens.


ANEXO III – Ainda as Lágrimas

Eurico Penteado

Meu artigo de 27 do mês findo, “Por que tanta lágrima?”, mereceu os comentários que aparecem abaixo, na seção São Paulo Pergunta.

Creio que foi Oscar Wilde quem disse certa vez (referindo-se obviamente às pessoas que escrevem) que no mundo só existe uma coisa pior do que ser comentado desfavoravelmente: é não ser comentado.

Assim, a mencionada carta (que o autor explica ter dirigido à coluna São Paulo Pergunta e não a mim, mas que a mim se refere nominal e repetidamente) me dá a grata satisfação de ter escapado, desta feita, ao que Wilde considerava o pior. Realmente, fui comentado. Desfavoravelmente, é certo, mas, enfim (seja Deus louvado!), fui comentado.

O meu paciente censor (o fato de me Ter lido é penhor de sua paciência) começa por aludir à minha “enorme erudição”, a meu “saber imenso” e à minha faculdade “de escrever de forma tão bonita”.

A ironia é tão direta, tão evidente, tão destituída de qualquer “nuance”, que me poupa o trabalho de negar possuir qualquer erudição – enorme ou minúscula – e de esclarecer que conto apenas com o saber rasteiro de qualquer alfabetizado estudioso. E quanto a escrever bonito, francamente não vale a pena comentar.

Um dos reparos do censor: “Pasmem os senhores leitores, mas é lícito ao homem chorar (mais lícito, pelo menos, do que distorcer os ditos de Rabelais)”. Não vejo razão para pasmo de quem quer que seja.

Não escrevi um tratado, ou sequer um ensaio sobre as lágrimas. Não neguei, portanto, ao homem (e seria estultice fazê-lo) o direito de chorar. Mas considerei – e continuo a considerar – grotescas as lágrimas dos choramingas, que as vertem publicamente (como está dito em meu artigo) “quando se aposentam, ou transmitem um cargo, ou se despedem, funcionalmente, de colegas de alguns anos, ou recebem manifestações de apreço, ou simplesmente sofrem uma derrota política”.

Se o meu censor equipara, se coloca no mesmo nível sentimental as lágrimas de um homem golpeado pela perda de uma esposa devotada ou de um filho querido e as lágrimas de um maricas, que as verte porque foi derrotado em votaçãozinha municipal – positivamente não posso concordar. Para mim, são coisas antagônicas: umas, comovedoras e profundamente respeitáveis; outras, burlescas e caricatas.

Na mesma frase acima citada, porém, o censor vai mais longe e me acusa de “distorcer os ditos de Rabelais”.

Esta é (digamo-lo eufemisticamente) uma curiosa acusação. Durante meus vários decênios de jornalismo, a princípio como profissional, depois como colaborador, sempre tive o vezo (talvez o mau vezo) de fazer frequentes citações. Não me impelia a isso o desejo de mostrar erudição, uma vez que fazer citações está ao alcance de qualquer escriba que, embora de escassa leitura, possua alguns dicionários de citações, dentre a centena dos que existem, em inglês, francês, alemão, italiano, espanhol e outros idiomas.

Minha motivação sempre foi outra – e a expliquei candidamente por estas colunas, há um par de anos ou pouco mais. É que sempre tive irresistível e irrestrita admiração pelos que têm a faculdade (que um grande crítico, com justiça, atribuiu a Renan) “de expressar altos pensamentos em linguagem impecável”. Como sou, e sempre fui, incapaz de realizar tal proeza, habituei-me a citar – sempre que isso vinha a pelo – os que a praticaram. Jamais, porém, deturpei ou adulterei uma citação. E é disso que agora me acusam.

As palavras de Rabelais a que me referi (popularizadas, aliás, por Eça de Queiroz, em seu ensaio sobre “A decadência do riso”, página 205 da 5a edição das “Notas Contemporâneas”) eram estas: “Et maintenant riez, car le rire est le propre de l’homme”. E eu escrevi, em meu artigo: “Rabelais dizia que “le rire est le propre de l’homme”. Portanto, sem o interpretar nem sequer traduzir, citei “ad litteram” o abade de Meudon. Mas o meu censor afirma que o distorci. Abstenho-me de comentar.

No quinto período de sua carta o censor me acusa (“excusez du peu...”) de Ter enlameado homens públicos. Em primeiro lugar, este jornal jamais publicaria qualquer artigo – meu ou de quem quer que fosse – cujo propósito fosse o de enlamear quem quer que fosse – cujo propósito fosse o de enlamear quem quer que seja. E, em segundo lugar, nunca foi meu propósito, em minha longa vida jornalística, enlamear alguém.

Não me parece, entretanto, que criticar (embora com certa irreverência) os chorões, que vertem lágrimas em público, não por terem sido vítimas de uma tragédia, mas apenas porque foram derrotados na votação de um grupelho municipal – não me parece que isso seja enlameá-los.

O meu censor termina sua missiva concordando comigo em que talvez o Brasil progrida durante a noite, enquanto os choramingas dormem. Mas acrescenta que talvez façamos progressos “também durante o dia, enquanto os vermes se incomodam com os grandes homens”. Suponho, sem resquício de modéstia, que seja eu um desses vermes.

Confesso ignorar, porém, quais os grandes homens com que me incomodo. E estou certo de que nenhum deles se incomoda comigo...

 

Recebido em 08/04/2015
Aceito em 16/11/2016

 


Revista Científica On-line Tecnologia – Gestão – Humanismo - ISSN: 2238-5819
Faculdade de Tecnologia de Guaratinguetá
Revista v.6, n.2 – novembro, 2016